Eneas Romero de Vasconcelo

A tortura e o terrorismo: o grande desafio jurídico e filosófico de Obama

In Dignidade da pessoa humana, Direitos Humanos Fundamentais on 12 de janeiro de 2009 at 1:18 am

O Governo Obama nem começou e já precisa encontrar uma resposta de como lidar com um grande desafio teórico e prático: como tratar juridicamente e politicamente a tortura utilizada pelo Governo americano Federal contra os terroristas.

Não é segredo para ninguém que no Governo Bush, desde já cotado para ser o pior da história, a tortura foi autorizada e até incentivada com a permissão jurídica para que o afogamento simulado seja utilizado contra presos acusados ou suspeitos de terrorismo. O negócio é bem simples: coloca-se um capuz escuro no preso algemado enquanto um carrasco joga água em seu rosto: a sensação da pessoa é de iminência da morte por afogamento. A agência de inteligência (a CIA) e as forças armadas americanas acostumaram-se com este método cruel e não vai ser nada fácil convencê-los a abandonar um sistema que pode até ser eficiente.

O Governo Obama pode adotar uma postura frontalmente contrária à tortura e proibí-la incondicionalmente e esta é a esperança que se deposita em um Governo que não cansou de repetir: yes, we can. Sim, nós podemos contruir uma ordem jurídica mais justa. O problema é que o dia à dia da política impõe escolhas difíceis e muitas vezes é mais fácil abandonar determinados princípios em favor da conveniência do momento, principalmente quando a decisão com base no princípio não seja popular e defender terrorista não é algo tão simpático depois do terrível atentado de 11 de setembro. E o mais fácil é que o novo Governo adote uma postura hipócrita: proibe-se a tortura no discurso político e jurídico sem tomar qualquer medida prática relevante contra os agentes públicos torturadores. Infelizmente, a tolerância com os torturadores é uma prática frequente em países cuja tortura ainda é encarada como meio de investigação ou de punição de bandidos.

A admissão, na teoria ou na prática, da tortura pelo novo governo americano seria um retrocesso: a tortura fazia parte do cotidiano do sistema de investigação no direito pré-moderno. Na modernidade, o surgimento dos direitos humanos, amparados no princípio da dignidade da pessoa humana, fez com a tortura passasse a ser uma prática ilícita e, em última análise, criminosa, especialmente punida quanto praticada por um agente estatal.

O direito moderno tem como pressuposto o reconhecimento de que todos ser humano deve ser tratado com igual respeito e consideração e é este princípio jurídico que garante a integridade do direito (DWORKIN).

Todos somos sujeitos igualmente livres e dignos; por sermos iguais em dignidade, independentemente da origem e do que tenhamos feito, é que devemos ser tratados com igual respeito e consideração em todas as situações.

A compreensão do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que veda a tortura incondicionalmente, exige que conheçamos melhor os seus pressupostos teóricos filosóficos derivados da filosofia de Kant, que defende que todo ser humano é um fim em si mesmo.

O homem pertence ao reino dos fins que decorre de sua liberdade. A vida humana não serve a outros fins, alheios ao próprio homem: um objeto pode ter vários fins, uma cadeira serva para sentar, um alimento produzido pelo homem serve para alimentá0lo, um computador também tem uma utilidade etc. A vida humana, porém, não serve a nenhum outro fim, pois o homem é um fim em si mesmo.

Por isto, o homem não pode ser tratado como uma coisa em nenhuma situação: não podemos ser coisificados, nem tratados como objetos, pois não somos um meio ou um objeto que se destina a outros fins. Reconhecer o homem como um fim em si mesmo é admitir que todo homem é igualmente digno, mesmo um bandido e um terrorista. Nesta caso, até a própria expressão bandido ou terrorista já se traí ao evitar a utilização do nome da pessoa ou mesmo a referência do outro como um homem, sim, como um bandido, um terrosita, um meliante etc., um igual, de modo a diminuir a sua dignidade: o problema é que a dignidade não tem preço, nem medida, ela é sempre incondicional. Nenhum homem é mais ou menos digno do que outro, pois todos somos igualmente dignos.

É evidente que os direitos humanos vão ser construídos em meio as tensões que emergem das culturas particulares mas que precisará ser mediada pelo imperativo categórico de Kant (que exige que devamos agir em cada ato de modo que aquele ato possa tornar-se em regra universal da conduta humana), tendo como pressuposto a dignidade da pessoa humana.

A vedação à tortura, portanto, deve ser reconhecida como um princípio jurídico universal de todo Estado Democrático de Direito, como ocorre no Brasil, por derivar do princípio jurídico da dignidade da pessoa humana, que é um princípio incondicional e absoluto.  Negar que existam direitos absolutos é colocar em risco o significado fundante da dignidade da pessoa humana para o Estado Democrático de Direito e quem corre risco nesta situação não é só o terrorista mas o próprio Estado Democrático de Direito, solapado pela negação de seu pressuposto fundamental: o respeito aos direitos humanos.

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