Uma das grandes novidades da Constituição Federal de 1988 foi a introdução do principio da prioridade absoluta dos direitos das Crianças e dos Adolescentes previstos pelo art. 227 da Constituição:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (sublinhei).
Na Constituição Cidadã, como a denominou Ulisses Guimarães, nenhum outro grupo social recebeu proteção tão abrangente, visto que além de impor dever de proteção pela família, pela sociedade e pelo Estado aos direitos fundamentais da criança e adolescente (vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão) que serão protegidos com prioridade absoluta, nos termos do dispositivo constitucional.
O próprio rol de direitos fundamentais previstos pelo caput do art. 227 já denunciam uma ênfase maior na defesa das crianças e dos adolescentes na medida em os direitos previstos neste dispositivo já estavam previstos em outras partes da Constituição.
De modo que ainda que não houvesse norma prevendo o direito à vida e à liberdade da criança e do adolescente haveria a proteção em razão do rol de direitos e garantias individuais do art. 5º.
Destacando mais uma vez a proteção especial que gozam as pessoas menores de 18 anos o art. 227 faz questão de enfatizar que crianças e adolescentes tem direito à educação e à profissionalização, à dignidade e ao respeito, ao lazer e á cultura, à saúde e à alimentação.
Além de destacar a importância dos direitos fundamentais da Criança e do Adolescente em espécie, enquanto grupo que goza de especial proteção, a Constituição previu que os direitos fundamentais da criança e do adolescente terão prioridade absoluta.
Nenhum outro grupo, ou pessoa, recebeu uma proteção tão enfática e somente no âmbito da legislação infra-constitucional é que os idosos foram beneficiados com a previsão de prioridade absoluta[1] e de proteção integral, embora com previsão em lei ordinária o que torna esta proteção normativa menos abrangente por não dispor de nível constitucional.
A amplitude da proteção constitucional do direito da criança e do adolescente, notadamente com a instituição da norma que prevê a sua prioridade absoluta, trás em seu bojo vários desafios à teoria e à prática constitucional brasileira.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, que criou um sistema nacional de garantia de direitos da Criança e do Adolescente acompanhada de uma política nacional, os desafios trazidos pela doutrina da proteção integral e pelo princípio da prioridade absoluta se ampliaram, especialmente com a previsão do seu art. 4º que pretendia conformar este princípio constitucional, in verbis:
“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.”
A primazia no recebimento de proteção e socorro em quaisquer circunstâncias e de precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública já era uma prática consuetudinária amplamente empregada pelo menos em relação as crianças de colo e sua ampliação pode ser reconhecida sem grande perplexidade.
A preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude, contudo, levante questões jurídicas de grande complexidade que desafiam o significado da separação de poderes no Estado Democrático de Direito.
É que, com o advento do princípio da prioridade absoluta e da proteção integral, e a previsão de preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas com destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude o que era uma decisão política de acordo com as prioridades de cada governante tornou-se uma norma jurídica de observação cogente pelos agentes do Estado.
Deste modo, o princípio da prioridade absoluta estabelece que os direitos das Crianças e dos Adolescentes devem ser protegidos em primeiro lugar em relação a qualquer outro grupo social, inclusive com a possibilidade de tutelar judicial de seus direitos fundamentais.
A própria referência constitucional é tão enfática a ponto de ser quase reduntante: prioridade + absoluta. Não bastou que o direito da Criança e do Adolescente fosse prioritário a Assembléia Constituinte entendeu que deveria conferir prioridade absoluta.
O Judiciário, atento ao disposto no art. 227, conformado pelo art. 4º do ECA, tem reconhecido esta prioridade determinando intervenção judicial sempre que instado em ações individuais e coletivas quando havia omissão do ente federativo responsável, conforme decisões dos mais variados Tribunais de Justiça do país.
A prioridade da Infância e da Juventude vem encontrando ressonância, também, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que vem aplicando este princípio, inclusive com a condenação dos entes federativos em obrigação de fazer, inclusive rechaçando, nesta situação, a tese de que haveria quebra da harmonia entre os poderes, in verbis:
“EMENTA
ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA –
ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO.
1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza
que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador.
2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de
política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente.
3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de
atender a propostas políticas certas e determinadas.
4. Recurso especial provido.” (STJ, 2ª Turma, RECURSO ESPECIAL Nº 493.811 – SP, 2002/0169619-5, relatora Ministra Eliana Calmom)
DIREITO CONSTITUCIONAL À ABSOLUTA PRIORIDADE NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, NORMA CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NOS ARTS. 7ºE 11 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE . NORMAS DEFINIDORAS DE DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICOS. EXIGIBILIDADE EM JUÍZO. INTERESSE TRANSINDIVIDUAL. ATINENTE ÀS CRIANÇAS SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO E PROCEDÊNCIA.
12. O direito do menor à absoluta Prioridade na garantia de sua saúde, insta o Estado a desincumbir-se do mesmo através de sua rede própria. Deveras, colocar um menor na fila de espera e atender a outros, ~e o mesmo que tentar legalizar a mais violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mercê de ferir de morte a cláusula de defesa da dignidade humana.” (STJ, RESP 577836/SC – Rel. Min. Luiz Fux – j. 21/10/04).
O Supremo Tribunal Federal, decidindo uma suspensão de segurança, também reconheceu que a prioridade absoluta do direito da criança e do adolescente abrange a possibilidade de intervenção judicial e condenação do ente federativo quando houver omissão do dever de proteção prioritários dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme reconheceu o Presidente do Supremo Tribunal Federal, na decisão do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, in verbis:
“Não há dúvida quanto à possibilidade jurídica de
determinação judicial para o Poder Executivo concretizar
políticas públicas constitucionalmente definidas, como no
presente caso, em que o comando constitucional exige, com
absoluta prioridade, a proteção dos direitos das crianças e
dos adolescentes, claramente definida no Estatuto da
Criança e do Adolescente. Assim também já decidiu o
Superior Tribunal de Justiça (STJ-Resp 630.765/SP, 1ª
Turma, relator Luiz Fux, DJ 12.09.2005).
No presente caso, vislumbra-se possível proteção
insuficiente dos direitos da criança e do adolescente pelo
Estado, que deve ser coibida, conforme já destacado. O
Poder Judiciário não está a criar políticas públicas, nem
usurpa a iniciativa do Poder Executivo.
(…)
Não há violação ao princípio da separação dos
Poderes quando o Poder Judiciário determina ao Poder
Executivo estadual o cumprimento do dever constitucional
específico de proteção adequada dos adolescentes
infratores, em unidade especializada, pois a determinação é
da própria Constituição, em razão da condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento (art. 227, §1º, V, CF/88).
A proibição da proteção insuficiente exige do
Estado a proibição de inércia e omissão na proteção aos
adolescentes infratores, com primazia, com preferencial
formulação e execução de políticas públicas de valores que
a própria Constituição define como de absoluta prioridade.
Essa política prioritária e constitucionalmente
definida deve ser levada em conta pelas previsões
orçamentárias, como forma de aproximar a atuação
administrativa e legislativa (Annäherungstheorie) às
determinações constitucionais que concretizam o direito
fundamental de proteção da criança e do adolescente.” (Supremo Tribunal Federal, Ministro Presidente, Gilmar Ferreira Mendes, SUSPENSÃO DE LIMINAR 235-0 TOCANTINS)
No caso da intervenção judicial nas políticas públicas na área da Infância e da Juventude o Judiciário, inclusive o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, vem reconhecendo que não se trata de quebra da harmonia ou da separação dos poderes.
A auto-compreensão do Judiciário sobre este tema e os desafios que lança à teoria constitucional merecem uma reflexão acadêmica mais aprofundada, o que farei em outro texto.
[1] O Estatuto do Idoso dispõe: “Art. 3o É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.”